Por Repórteres de Campo Frida da Silva e Ida Bel
Coração da resistência carioca nos últimos dois meses, o acampamento do
Ocupa Câmara foi transformado nesta terça-feira, dia 17 de outubro, em cenário
de repressão digno dos anos de chumbo, quando centenas de policiais isolaram as
escadarias do Palácio Pedro Ernesto, prenderam indiscriminadamente todos que
ali estavam e removeram por completo a ocupação. Este seria o ato final de
repressão na noite em que dezenas de milhares de pessoas foram às ruas do
Centro do Rio, mais uma vez, em apoio à luta dos professores e em defesa ao
direito de se manifestar, e quase 200 foram detidas, apesar de, na maioria dos
casos, não haver flagrante. A Polícia Civil divulgou que 70 dos presos seriam
enquadrados na lei contra o crime organizado – 12.850/2013 –, sendo 20 delas
menores de idade. Os maiores foram levados ontem a Bangu.
Nos mesmos degraus onde o movimento Ocupa Câmara lutou por uma CPI dos
ônibus idônea e pelo direito à livre manifestação, e celebrou dois meses de
ocupação no último sábado, manifestantes foram presos, muitos apenas por
estarem ali sentados. O acampamento foi desfeito e os pertences pessoais dos
ocupantes descartados em um caminhão da Comlurb, enquanto policiais buscavam
apreender “provas” e as pessoas detidas eram conduzidas para três ônibus que
deixaram a Cinelândia em direção a oito diferentes delegacias espalhadas pela
cidade – a maioria longe do Centro, para que se evitassem novos protestos. Este
foi o desfecho de um ato popular que durou por mais de sete horas, culminando
em confrontos entre policiais e manifestantes, que resultaram em muitas pessoas
feridas, sendo um jovem de 18 anos baleado por projéteis de arma de fogo.
O clima na concentração da passeata era de tensão. Alguns diziam
acreditar que a repressão policial seria severa, em retaliação aos confrontos
ocorridos na manifestação da semana anterior. As prisões indiscriminadas já
eram temidas, vide os mandados de busca e apreensão executados dias antes a
partir de investigações da Polícia Civil através das redes sociais. Supostos
integrantes de grupos anarquistas e moderadores de páginas da internet tiveram
seus computadores apreendidos e suas residências revistadas, sob a acusação de
serem articuladores de grupos organizados para a prática do “vandalismo”,
embora se saiba que a chamada “ação direta” em protestos não esteja ligada a
grupos, mas à adesão espontânea de manifestantes a um modo de agir. Como de
praxe, o telefone do plantão de advogados da OAB era repassado em páginas do
Facebook, caso alguém precisasse de defesa. E, de fato, foi a noite em que os
advogados mais tiveram trabalho desde o início das manifestações.
A passeata pela Rio Branco transcorreu de forma tranquila, com
professores na linha de frente, cantando: "Sai, sai da frente, sai que a
educação é chapa quente!". Diversos movimentos sociais, sindicatos e
partidos políticos da oposição de esquerda ergueram suas bandeiras em defesa aos
professores, trazendo também suas próprias pautas para o protesto. Dezenas de
mascarados caminhavam no meio da passeata e tornavam-se alvo principal de
fotógrafos, ávidos por mostrarem os rostos desses jovens.
Milhares de manifestantes empunhavam cartazes e entoavam canções
direcionadas principalmente contra o governador Sérgio Cabral Filho, pelo fim
da Polícia Militar, contra a Copa do Mundo e por mais verbas para a saúde e
educação. Emocionados, os professores parodiavam o hino libertário “Povo
Unido”: “Avante companheiros que essa luta é minha e sua. Unidos venceremos e a
greve continua.” Um senhor fazia piada da proibição ao uso de máscaras e
distribuía máscaras de chapeuzinho vermelho durante a passeata.
Chegando à Cinelândia, os manifestantes mascarados dirigiram-se às
imediações da câmara, onde, diferentemente da postura adotada na semana
anterior empreenderam-se na tarefa de impedir que depredassem o prédio. Embora
alguns rapazes tenham pichado os muros do Palácio Pedro Ernesto, cordões de
isolamento foram sucessivamente formados por mascarados que tentavam impedir as
pessoas de se aproximarem dos portões do prédio. Gritavam “escada!”, convocando
todos a deixarem as laterais do edifício. Alguns deles declararam aos
repórteres independentes que só resistiriam caso a polícia os atacasse e que
estavam procurando conter aqueles que se mostravam dispostos a iniciar a ação
direta na câmara. Construiu-se o consenso momentâneo de que quem tacasse alguma
bomba ou pedra seria considerado um policial infiltrado – conhecido como P2.
Nas ruas atrás da Câmara, centenas de policiais com escudos permaneciam
enfileirados. Um cartaz que indagava: "Onde está a ossada do
Amarildo?" foi posto na frente de um cordão de isolamento da PM, na Rua
Senador Dantas. Curiosos e integrantes das mídias corporativa e independente dirigiam-se
até os limites territoriais impostos pela polícia para tirarem fotos e
filmarem, e também eram interpelados com gritos de "volta" pelos mascarados.
Pouco antes das 20h, um silêncio inquietante tomou conta da Cinelândia.
O carro de som do Sindicato dos Profissionais da Educação do Estado já havia
deixado a passeata e as pessoas reunidas em frente à Câmara pararam de cantar
por alguns minutos. A esperança de que aquele poderia ser um dia sem violência
nem arbitrariedades perpassou as mentes de alguns dos presentes, que
idealizavam uma volta para casa sem correr de um bombardeio de gás
lacrimogênio.
Pouco depois deste momento silencioso, parte da massa decidiu seguir em
direção à Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) e começou a caminhar
pela Rua Araújo Porto Alegre. Acontece que dezenas de policiais militares
estavam a postos nas esquinas seguintes, com a Rua México e Avenida Graça Aranha.
E, a partir deste turbulento encontro entre manifestantes e policiais,
acabou-se a fugaz esperança de uma volta para casa tranquila. Às 20h15,
ouviam-se estrondos e começava a chuva de bombas de gás por parte da PM. Muitas
pessoas correram. Mascarados resistiram na linha de frente com a polícia.
De um modo geral, notou-se que, a cada manifestação a população perde,
cada vez mais, o temor pelas bombas, e anestesia-se diante da imagem do caos e
do cheiro de gás, resistindo aos ataques disparados pela PM, sob gritos de
"agrupa!", "volta!", e "ocupar, resistir, lutar pra
garantir!". Cada vez mais pessoas deixam de correr quando começam as
bombas e optam por permanecer no protesto, inclusive andando em direção às
bombas para registrarem o confronto com suas máquinas. Alguns manifestantes
mascarados mantiveram-se na linha de frente, resistindo às tentativas de
progressão de um grupamento do batalhão de Choque que vinha pela Avenida Rio
Branco. Protegidos atrás de tapumes e chapas de metal retiradas da fachada dos
comércios, os manifestantes lançavam pedras contra a guarnição policial,
fazendo-a recuar.
Enquanto isso, pequenos grupos espontaneamente formados espalhavam-se
pela Cinelândia em busca dos alvos preferenciais da sua iconoclastia. Quebraram
vidraças de agências bancárias, de uma lanchonete da rede McDonald’s, atearam
novamente fogo no Clube Militar e em um micro-ônibus da Polícia Militar. Foram
escutados disparos de armas de fogo letais, posteriormente confirmados em
vídeos que circularam na internet, um deles mostrando um policial atirando por
detrás de seu escudo, na Rua México, e o outro revelando prováveis policiais à
paisana, atirando contra os manifestantes, próximo ao micro-ônibus da
corporação.
Com a chuva de bombas na Cinelândia, o fogo no micro-ônibus da polícia, e
o barulhos de tiros, parte dos multidão correu em direção à Glória, pela Rua
Mestre Valentim, em busca de um lugar seguro. No caminho, um acidente com uma
moto deixou uma pessoa ferida na esquina da Rua Teixeira de Freitas e a Avenida
Augusto Severo. As pessoas corriam de bombas jogadas muito perto do acidente.
Ao caminharem pela entrada da Glória, manifestantes tentavam decidir por onde
seguir: se voltavam à Cinelândia, passavam pela Lapa ou seguiam para
Laranjeiras em direção ao Palácio Guanabara – a Rua Pinheiro Machado chegou a
ser interditada preventivamente.
Enquanto isso, carros do Batalhão de Choque contornavam a Praça Paris
para bloquear a passagem de quem fugia das bombas na Cinelândia. Cerca de 20
policiais do Choque progrediram a pé na direção de quem acabara de correr do
bombardeio na Cinelândia. Na esquina com a Rua Cândido Mendes, esse grupo do
Choque partiu para cima de todas as pessoas que ali estavam, jogando
muitas bombas de gás lacrimogênio. Quem estava em um bar na esquina da rua foi
pego de surpresa pela imensa névoa e ficou intoxicada com ela. Os homens de
preto subiram, então, a ladeira Cândido Mendes, e, diante de protestos de
moradores, chegaram a disparar tiro de borracha contra um prédio. Poucos minutos
depois, eles desceram de volta e foram vaiados pela população, que gritava,
revoltada: "Seu filho é meu aluno!" e "Tem que acabar, não
acabou, eu quero o fim da Polícia Militar.
Ali perto, um carro da PM do modelo Logan foi incendiado por manifestantes,
na Rua Joaquim Silva, onde também depredaram um ônibus e incendiaram sacos de
lixo. Na Lapa, as luzes foram apagadas, o acesso bloqueado pela PM e os bares
fechados.
Enquanto isso, manifestantes que ainda não haviam conseguido distanciar-se
do cenário de guerra da Cinelândia, seguiam desorientados, sem conseguir deixar
o local, pois subitamente formaram-se bloqueios policiais que fechavam
praticamente todas as rotas de fuga, disparando bombas contra a população. Para
muitos, a solução foi retornar às escadarias da Câmara, onde em meio a
policiais e bombeiros uma nova aglomeração de manifestantes se formou. Bastou o
conflito se arrefecer um pouco e centenas ou talvez mais de mil juntaram-se
outra vez na Cinelândia, vaiando a polícia e cantando músicas provocativas como
“au, au, au, cachorrinho do Cabral!”.
Ofendidos, os policiais jogaram mais bombas contra os manifestantes que
os seguiam cantando pela Rua Evaristo da Veiga, deflagrando-se um novo conflito.
Alguns jovens resistiram à ação da polícia, tacando pedras e morteiros,
enquanto outros tentavam se proteger das bombas. Alinhamentos do batalhão de
choque vindos de diferentes direções avançaram pela Cinelândia, mas o conflito
cessou novamente e mais manifestantes chegaram ao local. Pouco antes das 22h, a
Cinelândia permanecia lotada, tanto de manifestantes que cantavam animadamente
em frente à Câmara, quanto de PMs, que aguardavam enfileirados em pontos
estratégicos na área. Carros do Batalhão de Choque faziam rondas pela Avenida
Rio Branco, enquanto manifestantes gritavam "Não tem arrego!",
"A PM é a vergonha do Brasil" e "Resistência!".
Aos poucos, a polícia começou a conduzir
seguidas revistas a pessoas que carregavam mochilas. Um menor de idade foi
revistado e apreendido por, supostamente, portar um estilingue. A prisão do
jovem deixou inconformado quem assistia à cena, atraindo muitas câmeras e
curiosos à ação. Conforme os policiais conduziam o adolescente apreendido pela
Cinelândia, mais pessoas se aproximavam para protestar. A fagulha novamente
estava acesa e nova onda de confrontos se iniciou. As bombas foram tantas que
algumas delas estouraram ao lado dos policiais a postos perto do Cinema Odeon.
Mais corre-corre e a multidão se dispersou.
Em meio aos conflitos que irrompiam a todo instante, muitos
manifestantes que não estavam confrontando a polícia procuraram abrigo nas
escadarias da Câmara Municipal e viram-se, de repente, cercados por um cordão formado
por centenas de policiais, que, por sua vez, começaram a prender quem ali
estivesse. Enquanto eles desmontavam o acampamento da ocupação, quatro ônibus da
polícia deixaram o local, repletos de manifestantes detidos. Paralelamente, o
cerco policial impedia a aproximação da imprensa alternativa e ampliava-se
empurrando as pessoas que assistiam à operação para cada vez mais longe. Quando
se disseminou a informação de que todos os demais que insistissem em continuar
na Cinelândia seriam também presos, os últimos que ainda acompanhavam a ação da
polícia desistiram de permanecer no local.
De dentro do ônibus da polícia, um repórter ninja escondeu seu
smartphone e continuou transmitindo apenas o áudio ao vivo via TwitCasting. Enquanto
isso, advogados da OAB e de organizações de direitos humanos empreendiam-se na
árdua tarefa de identificar para quais delegacias os presos seriam conduzidos. Parentes
e amigos de manifestantes comunicavam-se pelo Facebook, em busca do paradeiro
dos detidos. Ao longo de todo o dia seguinte, diversas manifestações a favor
dos presos foram feitas na internet, ressaltando-se que a maior parte deles
eram ativistas pacíficos e estudantes.
Do total de 190 detidos e distribuídos em oito delegacias, estima-se que
67 permanecem presos e 18 adolescentes apreendidos. Estão respondendo
principalmente pelos crimes de formação de quadrilha, aliciamento de menores,
dano ao patrimônio, tentativa de furto e incêndio. Uma parcela significativa
dos presos foi enquadrada na lei 12.850/2013, que define o conceito de
organização criminosa, muito embora não tenham sido apresentadas outras provas
senão a mera presença circunstancial nas escadarias da Câmara para que se
fundamentasse a tese de que estas dezenas de pessoas estavam associadas entre
si para a prática de crimes. As “provas” acionadas para se configurar o
flagrante foram o material apreendido em posse de uma parcela dos detidos e,
sobretudo, nas barracas e cozinha do acampamento do Ocupa Câmara: como facas, provavelmente
parte delas foi utilizada no churrasco de sábado; madeiras com pregos,
possivelmente retiradas da estrutura de madeira que sustentava a cozinha; leite
de magnésio, utilizado para sanar a irritação causada pelo gás de pimenta,
estilingues, além de máscaras contra gás, as quais são hoje usadas até por
professores.
Um abaixo-assinado foi lançado ontem a favor da liberação dos presos
políticos, no site Avaaz, e já colheu mais de 9 mil assinaturas. Nas páginas
dos jornais de hoje, fotos dos presos políticos e de sua transferência para
Bangu, como num hall de criminosos procurados, transformados em
"vândalos", inimigos da segurança pública carioca, com a chancela da
mídia corporativa. A batalha jurídica agora segue na Justiça, com dezenas de advogados
da OAB lutando pela defesa de seus réus contra as acusações de organização
criminosa, e novas denúncias contra policiais surgem nas redes sociais com
rapidez. Mas a maior parte da sociedade carioca assiste apática e indiferente ao
desenrolar de um processo de recrudescimento da máquina repressora estatal.
Excelente narração dos fatos. Estive na passeata e saí um pouco antes do tumulto começar.
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